segunda-feira, 30 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de...Tiago Santos

COM UMA VIAGEM NA PALMA DA MÃO

Agarras-te à hora
Em que o tempo não passou
Mergulhas nas cores
Que a loucura te emprestou
E quando te vês para lá do espelho
Encontras a solidão

Descobres o Mundo
De quem tem pouco a perder
E sobes às estrelas
Que ontem não podias ver
E perdes o medo de estar só
No meio do multidão

Tradições
Atrás de contradições
Fizeram-te abrir os olhos
Podes dizer:
Eu... sou

Jorge Palma, in Com Uma Viagem Na Palma da Mão

domingo, 29 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Ana Cristina Marques



UM HOMEM SÓ

Um homem de meia idade treme,
tem na mão o papel, o argumento
ou a escapatória daquilo que o traz por ali.

Esconde as palavras que parecem
dissimular-se por detrás dum bigode
nervoso. O olhar foge-lhe para a mão

onde transporta a sua arma de caligrafia
urgente, vem assinada por alguém
que lhe reconhece certamente os passos

e as angústias, obstáculos de toda uma vida
que deixou de lhe despertar o interesse.
«Eu quero cumprir!»

Repete ele a custo, numa espécie de discurso
com que engana a sua própria existência.
O destinatário do recado finge acreditar

na sua encenação.
O homem bate em rápida retirada
prometendo regressar com brevidade,

mas só ele sabe o quanto quer fugir dali,
o quanto é amarga a figura que representa
neste cilíndrico mundo cruel, que o esmaga,

sem contemplações.


Miguel Pires Cabral

sábado, 28 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de … Ângela Semedo


LIBERTAÇÃO

E porque o teu coração encerra
a saudade do mar e a saudade da terra
- tua ilha é grande.

E porque teus sentidos traçam norte e sul
e traçam leste e oeste norte e sul
- tua ilha é grande.

E porque tens os olhos virados para o azul
para lá do azul e para cá do azul
- tua ilha é grande.

E porque teu sangue vive o destino de tantas raças
no mesmo latejar de ansiedades e resignações dores alegrias e desgraças

- tua ilha é grande.

Manuel Lopes

sexta-feira, 27 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Isabel Rainha

Na Universidade de Coimbra, os anos sessenta, em plena
ditadura, ficaram marcados pela contestação ao regime. Era principalmente
através dos poetas que se chegava aos menos politizados alertando-os para as injustiças, ao mesmo tempo que se mostrava um caminho de esperança.

José Afonso e Adriano Correia de Oliveira traziam-nos
a palavra dos poetas com música, a que melhor atinge o coração dos homens, mas
havia livros que nos tocavam de modo muito especial porque refletiam o nosso
tempo. Era o caso da Praça da Canção e de O Canto e as Armas, ambos
de Manuel Alegre.

O poema que envio pertence ao último livro. Fala-nos
do poder da palavra e é dedicado a Luís de Camões.


LUÍS DE CAMÕES

Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.

Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.

Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.

Só ele Príncipe.
Dormiam rainhas na cama do rei
princesas esperavam no belvedere
Ele tinha uma escrava que morreu no mar.

Morreram escravas as rainhas
morreram escravas as princesas
nenhuma teve o seu rei
para nenhuma chegou o Príncipe.
Por isso a única rainha
foi aquela escrava que morreu no mar:
só ela teve
o que tinha uma flauta.

Morreram os reis que tinham impérios
morreram os príncipes que tinham castelos
mas ele não:
tinha uma flauta.
De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.

E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.

Passaram por todas as fronteiras.
Só não puderam passar
pela fronteira
daquela flauta.

E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.

Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.

Manuel Alegre, O Canto e as Armas

quinta-feira, 26 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Conceição Ribeiro

Deu-nos Abril
o gesto e a palavra

fala de nós
por dentro da raiz

Mulheres
quebrámos as grandes barricadas
dizendo igualdade
a quem ouvir nos quis

E assim continuamos de mãos dadas
O povo somos
mulheres do meu país.

Maria Teresa Horta

quarta-feira, 25 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA


A escolha de... A Páginas Tantas



25 DE ABRIL



Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo



Sophia de Mello Breyner Andresen in O Nome das Coisas

terça-feira, 24 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... António Vasconcelos Raposo


MAR SONORO


Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu Suponho
Seres um milagre criado só para mim.


Sophia de Mello Breyner Andresen in Dia do Mar

segunda-feira, 23 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA


A escolha de… A PÁGINAS TANTAS



Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.

Eugénio de Andrade, in Ofício de Paciência

domingo, 22 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA


A escolha de…. Miguel Machado 

ESCUTO MAS NÃO SEI

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio

Ou deus


Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies no vazio

Ou a consciência atenta

Que nos confins do universo

Me decifra e fita



Apenas sei que caminho como quem
É olhado e amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco


Sophia de Mello Breyner Andresen 

sábado, 21 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Bruna Gaspar  (7ºF)

BONS AMIGOS

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir.
Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.
Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.
Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que entregam o ombro pra chorar.
Porque amigo sofre e chora.
Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade ou te apontam a realidade.
Porque amigo é a direção.
Amigo é a base quando falta o chão!
Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros.
Porque amigos são herdeiros da real sagacidade.
Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho,
Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!

Machado de Assis

sexta-feira, 20 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Amélia Wolstenholme (12ºB)

OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro.
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade, in Os Amantes sem Dinheiro

quinta-feira, 19 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Lúcia Marques


AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Eugénio de Andrade, in Coração do dia

quarta-feira, 18 de abril de 2012

170.º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE ANTERO DE QUENTAL


Sem querer quebrar a cadeia, assinalo os 170 anos do nascimento de um dos maiores poetas portugueses. Com um soneto seu, claro.

Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.


Antero de Quental, Sonetos


DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Gilda Rosa

UMA PEQUENINA LUZ

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena

terça-feira, 17 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Raquel Leal (12ºB)


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.



David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 16 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… João Pedro Secca

PARA SER GRANDE

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis in Odes De Ricardo Reis

domingo, 15 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de … Teresa Palhares

FELICIDADE

Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia – por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto

sábado, 14 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Fátima Madaleno



Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
Cada ave se transforma noutro ser.


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Teresa Gomes

NO TEU POEMA

No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida

No teu poema
existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E, aberta, uma varanda para o mundo.

Existe a noite
O riso e a voz refeita à luz do dia
A festa da Senhora da Agonia
E o cansaço
Do corpo que adormece em cama fria.

Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe o grito e o eco da metralha
A dor que sei de cor mas não recito
E os sonos inquietos de quem falha.

No teu poema
Existe um canto-chão alentejano
A rua e o pregão de uma varina
E um barco assoprado a todo o pano.

Existe um rio
O canto em vozes juntas, vozes certas
Canção de uma só letra
E um só destino a embarcar
No cais da nova nau das descobertas.

Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe a esperança acesa atrás do muro
Existe tudo o mais que ainda escapa
E um verso em branco à espera de futuro.


José Luís Tinoco

quinta-feira, 12 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Sara Oliveira


Amigo

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra «amigo»!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill, in No Reino da Dinamarca

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Maria João Santos



POEMA DA DESPEDIDA



Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

Mia Couto

terça-feira, 10 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Adelaide Pereira

URGENTEMENTE

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 9 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de ... Clara Anunciação


ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca

domingo, 8 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de ... Paula Varela


INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou o mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.


Carlos Drummond de Andrade

sábado, 7 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA


A escolha de… A PÁGINAS TANTAS

No 119º aniversário do nascimento de José de Almada Negreiros

ACONTECEU-ME

Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos !
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros

sexta-feira, 6 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Adília Ramos


Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 5 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Suzete Monteiro

IMPRESSÃO DIGITAL

Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não veem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns veem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns veem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!


António Gedeão, in Movimento Perpétuo

quarta-feira, 4 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Conceição Pereira


Ao longe os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.

Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
Não esperamos nada
E temos frio ao sol.

Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.

Ricardo Reis

terça-feira, 3 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de...Cristina Nunes

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa

segunda-feira, 2 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de...Sarah Musgrave

O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.

Pablo Neruda, in Poemas de Amor

domingo, 1 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Carlos Guerreiro

PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.


António Gedeão, in Movimento Perpétuo